Recentemente tive uma experiência curiosa. Fui a uma entrevista de emprego para ser telefonista numa clínica de medicina alternativa. A tarefa não me agrada especialmente, muito pelo contrário, mas estava entusiasmada com a ideia de ganhar mais algum dinheiro e ser útil. A dona do estabelecimento não me pareceu muito esquisita em relação aos requisitos exigidos aos candidatos; depois de meia dúzia de questões para me conhecer melhor, combinamos a data da formação. Foi então que as coisas começaram a ficar estranhas.
A "patroa" tinha-me dito que o trabalho consistia em contactar potenciais clientes e oferecer-lhes um prémio. Pensei que a ideia fosse, por meio da atribuição dum serviço, a título gratuito, nessa clínica, dar a conhecer os vários serviços da clínica na perspectiva de ganhar novos clientes. No dia da formação vi que a história era outra. Logo que cheguei à "formação", ela deu-me para a mão umas páginas com o texto que deveria dizer a quem contactasse. Todo o conteúdo daquelas páginas deixou-me com a pulga atrás da orelha...
Para começar, não usávamos o nome da empresa para nos apresentarmos, usávamos um nome fictício, duma empresa que nem deve existir. Tínhamos que dizer que o contacto vinha em seguimento dum questionário a que a pessoa tinha respondido e que, por isso, estava habilitada a receber um prémio se o seu questionário fosse um dos sorteados. Já estávamos preparados para que a pessoa dissesse que não se lembrava de responder a questionário nenhum; só tínhamos que explicar que era uma coisa normal, pois já tinha sido há mais de um ano. Ora, eu sei que esta história do questionário é completamente falsa, porque a minha irmã respondeu ao mesmo anúncio que eu, mas foi à entrevista e formação no próprio call-center onde o trabalho ia ser desempenhado (eu estive na clínica) e pôde assistir aos outros telefonistas em acção e verificou que as chamadas eram feitas para todos os números de telefone possíveis e imagináveis, ou seja, ligavam sequencialmente para todos os números de telefone, até para números que não estão atribuídos, na expectativa de que alguém atenda o telefone. Os questionários até podiam ter sido feitos (embora eu duvide muito disso), mas era mais que evidente que eles não ligavam apenas a quem tinha respondido ao questionário.
O guião continuava com a recolha dos dados pessoais da pessoa e depois pedíamos para que aguardasse enquanto confirmava se é um dos contemplados com o prémio. Aqui deparei-me com mais outro ponto a cheirar a esturro. Nós não tínhamos que confirmar nada, pois não havia o que confirmar, apenas tínhamos que verificar se a pessoa se enquadrava nos critérios de qualificação deles e, em caso positivo, dizíamos que ganhou o prémio, caso contrário dizíamos que não teve essa sorte. A palhaçada é tal que a minha irmã diz que nessa fase de "verificação" os telefonistas ficavam a olhar para as unhas ou a mexer no telemóvel enquanto deixavam as pessoas do outro lado do telefone à espera, para alimentar a farsa... Os próprios critérios de qualificação eram suspeitos, pois só pessoas empregadas, reformadas ou com uma pensão de viuvez podiam ser seleccionadas; os restantes (entenda-se, quem não tem rendimentos) estavam excluídos à partida.
Os felizardos que supostamente tinham ganho o prémio eram informados disso com a indicação do número do questionário, outra mentira já que esse número era o mesmo para todos os que contactássemos e representava o código do telefonista, não um número legítimo do questionário (já que esses nem existiam). Tínhamos que lhes pedir que se dirigissem nesse mesmo dia a um local para receber o prémio. O espaço de tempo para receber o prémio é tão curto que, pela emergência da situação, as pessoas são levadas a concordar imediatamente sem pensar bem no que lhes está a ser dito ou pesquisar sobre a empresa, não lhes dando tempo de se aperceber de todas as coisas que cheiram mal naquela história.
A "patroa" vendeu bem o peixe dela, soube arranjar justificações para os pontos mais estranhos do guião, como o nome falso da empresa e o número falso do inquérito. Tinha até uma lista de questões frequentes que as pessoas mais espertas podem levantar, seguida da resposta adequada para as fintar e acabar com as dúvidas. Mesmo assim, aquilo tresandava a vigarice e quando eu falei que aquele guião baseava-se em afirmações falsas, a "patroa" descontrolou-se: começou a barafustar que o negócio dela já existe há muito tempo e que ainda ia durar muito mais; fartou-se de gesticular, até bateu com o punho na mesa; a cara dela ficou completamente vermelha; disse que não ia admitir que insultassem a empresa dela e ofereceu-me a mão para se despedir de mim. Ou seja, indirectamente expulsou-me da sala, provavelmente para que as minhas palavras não semeassem dúvidas no outro formando que estava na sala comigo. Nem precisei entrar em detalhes sobre o que achava que estava mal naquele guião, porque ela perdeu as estribeiras imediatamente. Se ela e a empresa dela fossem tão honestas como ela queria fazer parecer, ela teria contra-argumentado para desfazer as minhas dúvidas, mas como não havia argumentos, só lhe sobrou ter aquela reacção desproporcionada e livrar-se de mim tão rápido quanto pudesse.
Escusado será dizer que fiquei sem trabalho... Eu achava que trabalhar em telemarketing era mau, mas afinal existe algo bem pior. Por curiosidade, pesquisei na Internet o nome fictício da empresa que usávamos no guião e logo os dois primeiros resultados eram de páginas com queixas sobre essa empresa, onde as descrições de quem recebeu as chamadas são coerentes com aquilo que agora relatei. Pelo que li, aqueles que caem no erro de ir receber o prémio não têm boa coisa à sua espera. Espero que quem ler esta mensagem fique com os olhos e ouvidos bem abertos, se alguma vez receberem uma chamada semelhante ao que descrevi, e que consigam ver além dos prémios valiosos que dizem que ganharam e raciocinem para evitar serem burlados, porque infelizmente estes e outros como eles andam aí.
4 comentários:
Olá!
Só agora vi este teu post pois entrou-me na caixa de correio ontem à uma e tal..
Já tínhamos conversado sobre isto... De facto é uma grande intrujice.
Mas acredito que existam pessoas que tenham estômago para trabalhar nisto (ou desespero), como aquela que a tua irmã referiu que até era agressiva a falar...
Ainda bem que tu não és uma dessas pessoas. Mas isso já não é novidade para mim. :-)
eu já trabalhei num call center com processo similar, a vender antenas da tv cabo, era-nos dado cópias da lista telefónica e tínhamos de ligar a todos e dizer que foram sorteados 15 antenas, em promoção especial, e o dito foi um dos contemplados. se ele perguntasse como é o que o sorteio era feito, dizíamos que o computador o fazia através de números telefónicos. Enfim, mas pelo menos não havia empresa fictícia.
Acabei por deixar de trabalhar nisso, e gostaria de poder dizer que foi por ter-me sentido revoltado com a mentira, mas não, apenas porque o dinheiro não era suficiente para acalmar a minha consciência e eu não gostava nada de estar a vender mais despesas a velhotas que eram satisfeitas por 4 canais. Enfim...
O que irrita é que os governos têm conhecimento dessas empresas, mas não fazem nada por comodidade.
eu pensava que hoje em dia já não valesse tudo...
Estás a gozar, não? Tenho a impressão que cada vez há menos escrúpulos, cada vez se olha mais para o próprio umbigo e se satisfazem os próprios interesses sem olhar a meios. Por sua vez, a crise incentiva as pessoas a isso e serve de desculpa a outras que sempre desejaram fazê-lo.
Enviar um comentário